15 junho 2007

Vida de estátua

Texto retirado do site Palma Louca, link no título deste post.
Vida de estátua

18/04/2007
RACHEL ALMEIDA, de CURITIBA

Se você imagina que os artistas que vivem do estatuismo chegam ao fim de um dia de trabalho recolhendo apenas moedinhas, ou notas de R$ 1, está enganado. Na pele de um humilde pescador, o paulista Marcello Zago já ganhou o dia ao ver um admirador depositar R$ 50 na urna à sua frente. Praticamente um recorde. Se você também acredita que a reação de quem passa por uma estátua-viva costuma ser apenas de curiosidade, admiração, ou mesmo indiferença, errou mais uma vez. O mesmo Marcello já sentiu a dor de um tênis arremessado na sua cabeça. A carioca Ana Paula Casares, que trabalha diariamente no Largo do Machado como a estátua Justiça, ouve de uma mesma senhora, há anos, que lhe falta um bom tanque de roupa suja para lavar.

As estátuas-vivas tentam se equilibrar na corda-bamba entre carinho e desaforos. Entre os prós, estão o contato direto com o público e a liberdade para decidir a carga horária de trabalho. Entre os contras, o preconceito e o nem sempre respeitável público das ruas. Principalmente quando algum bêbado resolve cismar com a estátua. "Tem gente que, às vezes, apalpa meu bumbum como quem não quer nada. Se for rápido e nada muito grosseiro, eu deixo o engraçadinho pra lá. Continuo parada, esperando que ele se manque", relata Kari Kolorida, nome artístico da catarinense Carina dos Reis, radicada há cinco anos em Salvador.

Na pele de uma clássica estátua grega, em cima de um banco por três horas diárias, ela já conta com um time de fãs na Praça da Piedade, na capital baiana. "Um ex-namorado que trabalhava como estátua me incentivou a começar na profissão. Tem gente que fica horas parada me admirando, como se tivesse virado estátua também. Dá para perceber mesmo vendo apenas os pés das pessoas. Minha estátua tem os olhos quase fechados", conta Carina, que deixa ao seu lado um caderninho de anotações para quem quiser deixar um recado ou fazer contatos profissionais.

De mãe para filha

Como Carina, muitos dos artistas que se dedicam ao estatuismo recebem incentivo de pais, irmãos ou amigos que já conhecem o caminho das pedras. A bruxa Za Pietá (Zilda Piedade dos Reis), que todo fim de semana bate ponto no Parque Ibirapuera, em São Paulo, ensinou as manhas da arte do estatuismo para a filha, Ane Keture dos Reis. E, pelo jeito, ensinou direitinho: a paulista, ao lado do amigo Marcello Zago, venceu o concurso de estátuas-vivas promovido pelo Festival de Teatro de Curitiba, no mês passado. A dupla encarnou um fofo casal caipira, concorrendo com outros 14 profissionais. Dividiu o prêmio de R$ 3 mil e uma grande exposição na mídia.

Num dia de trabalho (que não costuma passar de cinco horas, pois depois disso o corpo começa a pedir arrego), as estátuas-vivas ganham um "salário" variável, que costuma oscilar de R$ 40 a R$ 200. E pode chegar até a R$ 400 em dias mais movimentados, como certos domingos da bruxa Za Pietá no Ibirapuera. Mas a renda do dia pode ir por água abaixo quando chove muito ou o sol resolve castigar a pele, situações em que os artistas preferem cancelar as apresentações. O trabalho nas ruas, então, acaba tendo que ser alternado com festas de empresa, lançamentos de produtos e outros eventos em que os cachês são negociados na média de R$ 100 por hora.

Não existe estatuto, regras ou um perfil definido para quem quer virar estátuas. Até o temperamento tranqüilo, aparentemente fundamental para quem se dedica a um trabalho cujo maior desafio é ficar parado sem mexer um fio de cabelo, pode ser deixado de lado quando se tem garra. É o que defende o fluminense Max Gomes, um "anjo" hiperativo de 25 anos. Ele só fica quieto quando está trabalhando, ao lado da mulher Carol Cavalcante. "O corpo fica parado, mas a cabeça não", explica. Max aprendeu a arte com o irmão, que viaja a América do Sul como estátua. Adora o trabalho, mas às vezes se chateia com o público. "Já cheguei até a ser cuspido", conta. Sem falar no olho-grande de outras estátuas. "Se eu contar qual serão os nossos próximos personagens, é só esperar que aparece uma cópia", reclama.

Quando a estátua vira psicóloga

Alongamento, aplicação de hidratante antes de pintar o rosto e o corpo e aquela providencial ida ao banheiro são os cuidados mais comuns adotados pela classe. A solidariedade dos comerciantes que trabalham ao redor também é fundamental na hora de tomar um copo d'água ou quando não dá mais para segurar a vontade de usar o banheiro. Coceiras no nariz, bichos que posam no corpo e outros incidentes são contornados com muita concentração.

A origem das estátuas-vivas remete ao teatro grego. Na Grécia Antiga, para tornar o ator mais visível, eram usados sapatos de plataforma altíssimos, túnicas amplas e máscaras. Esses artistas costumavam ficar parados por um longo período de tempo para representar uma estátua. Séculos depois, na Europa, nasceram as estátuas-vivas como as conhecemos hoje. Uma variação dessa técnica foi desenvolvida mais tarde nos Estados Unidos: os manequins vivos, que trabalham, principalmente, em vitrines de loja.

Sem ídolos ou cursos constantes que ensinem a arte do estatuismo, os artistas costumam mesmo se virar com a ajuda dos amigos e parentes e a idealizar e confeccionar seus próprios figurinos – parte fundamental para a construção de um personagem. Na concepção da estátua Justiça, Ana Paula Casares passou dois anos recortando e guardando notícias de jornal que revelasse grandes injustiças da sociedade brasileira. "Queria fazer um trabalho político, que mexesse com as pessoas", explica. Depois de dois anos colhendo as notícias mais marcantes, tem gente que pára e quer conversar sobre um problema pessoal. "Deixo a estátua de lado e converso. Não tem satisfação maior que essa".

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